Decreto N.º 14/2021, classifica
Tinha de ser o primeiro!
O primeiro esqueleto preservado do Paleolítico Superior em Portugal,
O primeiro, sendo o de uma criança,
O primeiro na sua sepultura preservada,
O primeiro a demonstrar vestígios de encontros passados entre populações distintas,
E agora… o primeiro esqueleto a ser “Tesouro Nacional”.
Na verdade, não é um tesouro português, mas sim um tesouro da História da Humanidade que conta narrativas inacreditáveis e tantas vezes questionadas de encontros, contactos e sucessos. Conta segredos da existência das comunidades humanas do passado, quantas vezes catalogadas ao saber da Paleontologia Humana de forma estanque e limitada, mas inquisitiva e produtiva.
Quantos destes vestígios foram encontrados por mero acaso. A Criança do Lapedo não o foi; foi descoberta no âmbito de trabalho de prospeção, não de vestígios humanos, mas de indícios de arte rupestre. Foi localizada por um jovem estudante, no Vale da Ribeira da Caranguejeira, no sítio do Lapedo; era Pedro Ferreira, acompanhado pelos curiosos e competentes Pedro Souto e João Maurício. Corria o ano e o mês em que se discutia no Japão a classificação dos sítios de Arte Rupestre do Vale do Côa como Património da Humanidade – dezembro de 1998.
De início, apenas uns ossos incompreensíveis; depois, o reconhecimento da sua natureza humana, e a seguir o ocre, depois o assombro! O pormenor, o detalhe, preservado por milhares de anos, do carinho de quem lhe preparou o último adeus. Mas só mais tarde os seus pequenos ossos revelariam o mistério que encerrava… o testemunho biológico de encontros passados entre populações que foram, milhares de anos mais tarde, apelidadas de “neandertais” e “sapiens modernos”. Agora, o primeiro a ser tesouro. E merece-o, pelo testemunho que nos trouxe.
Cidália Duarte
A propósito do Projeto de Decreto n.º 14/2021 que classifica como bens de interesse nacional, com a designação de «tesouro nacional», entre outros, ao esqueleto da Criança do Lapedo e artefactos arqueológicos associados, sendo-lhes atribuída a designação de «tesouro nacional» recuperamos, também, um breve depoimento do arqueólogo João Zilhão - publicado na revista Sábado, de 15 de dezembro de 2018 - que liderou a primeira equipa, juntamente com Cidália Duarte e Ana Cristina Araújo que há mais de vinte anos, efetuou os primeiras intervenções no local do achado:
"Ainda bem que há gente na Direcção Geral do Património Cultural e aqui em Leiria que mantém a chama acesa. O achado tem uma importância em si mesmo e, muito grande, como marco histórico nos debates sobre a evolução humana. Ao fim destes anos todos as pessoas entendem isso bem e tentam passar essa mensagem para a população. Só posso ficar contente".
O achado do esqueleto conhecido como da Criança do Lapedo – pertencente a uma criança do Paleolítico Superior, com cerca de 29.000 anos –, atualmente em depósito no Museu Nacional de Arqueologia, ocorreu em 1998, na região de Leiria, num abrigo natural existente na margem esquerda do Vale do Lapedo, denominado Abrigo do Lagar Velho. Objeto de diversas intervenções arqueológicas, o Abrigo do Lagar Velho tem vindo a revelar uma importante sequência de ocupações humanas do Paleolítico Superior, encontrando-se, desde 2013, classificado como Monumento Nacional.
Aproveitando uma reentrância natural existente na parede de fundo deste Abrigo, um grupo de caçadores recolectores do Período Gravetense depositou aí o corpo de uma criança que terá falecido no decurso do seu quinto ano de vida. A deposição desta criança envolveu um ritual muito cuidadoso e complexo, incluindo a colocação de um gorro ornamentado com quatro caninos de veado (Cervus elaphus) e um colar com duas conchas de caracol do mar (Littorina obtusata).
Os estudos efetuados por equipas internacionais e multidisciplinares - liderada pelos investigadores, o arqueólogo João Zilhão e o antropólogo Erik Trinkaus - vieram demonstrar a importância deste esqueleto a nível mundial, pois, embora corresponda claramente a um indivíduo juvenil moderno (Homo sapiens sapiens) apresenta, igualmente, algumas características morfológicas arcaicas que se aproximam das observadas nos neandertais, algo que a sequenciação do genoma destes últimos acabaria por confirmar.
♦ Se desejar saber mais:
► RTP ensina [2001] | O menino de Lapedo
► ZILHÃO, João [2005] | A Criança do Lapedo e as origens do homem moderno na Península Ibérica
► Público [8 de Agosto de 2009] | Crianca do Lapedo - Esta era a cara do miúdo há 25 mil anos
► National Geographic [23.05.2018] | Fósseis em Portugal? O Menino do Lapedo faz 20-anos
► Público [15 de dezembro de 2018] | Esqueleto da crianca do Lapedo proposto como tesouro nacional
► DN/LUSA [17.06.2019] | "Crianca do Lapedo" em Leiria vai ser classificada