A ampla área do Portugal central que tem Viseu por centro e se estende, entre vales e serranias, do Mondego até ao Douro constitui um polo aglutinador de sucessivas culturas humanas. Diz a tradição que foi esta a pátria de Viriato. Mas a figura deste pastor, mais tarde guerreiro e herói na luta contra o invasor romano, é nesta exposição apenas um pretexto para acentuar a identidade milenar da região e das suas gentes. Perpetuados através dos seus hábitos em vida e dos seus costumes na morte, os verdadeiros heróis são todos os povos que ali se fixaram, desde os primitivos agricultores neolíticos, passando pelos primeiros metalurgistas, entre os quais sobressaem os que tão exuberantemente trabalharam o bronze, até chegar ao domínio romano e aos tempos medievais cristãos.
Após duas décadas de estudo intenso, qualificado e pluridisciplinar, é hoje possível delimitar no Portugal Central uma ampla unidade geomorfológica que nos permite essa coisa simples, e afinal tão complexa, que Ian Hodder sintetizou no seu desejo de ver de novo a “arqueologia como arqueologia”, conferindo-lhe o estatuto da “história de longa duração”. Podem finalmente seguir-se as continuidades e ruturas, as diferenças e semelhanças, das gentes que ao longo de milénios ocuparam os vales e serranias da região de Viseu, descendo sempre que necessário à singularidade dos solos habitados ou subindo até ao mundo envolvente, onde se destetam afinidades, por vezes, a longa distância.
Nesse período nebuloso da Antiguidade em que a História e o Mito por vezes se confundem, os vales e serranias do centro de Portugal foram talvez a pátria de Viriato.
Mas se nesta exposição pedimos emprestado o nome do chefe guerreiro que se distinguiu na resistência à ocupação romana, é sobretudo para melhor realçar a forte identidade cultural da região de Viseu, desde as épocas dos primeiros pastores e agricultores até ao limiar da nação portuguesa.
Área de passagem obrigatória entre o Centro-Sul e o Norte portugueses e os espaços fronteiros da Meseta Norte espanhola, espaço de transição entre o Sul Mediterrânico e o Norte Atlântico peninsular, o centro beirão hoje português constitui-se como espaço regional privilegiado para o estudo de trajectos históricos de longa duração, espelho de virtualidades e potencialidades de desenvolvimento mas também de dificuldades e condicionantes estruturais que hoje mascaramos com o eufemismo de “custos da interioridade”. Após longos anos em que o trabalho pioneiro de investigadores como Leite de Vasconcelos, Amorim Girão, Santos Rocha, José Coelho, Vera Leisner, Leonel Ribeiro, Celso Tavares da Silva e Castro Nunes foi abrindo caminho ao conhecimento do riquíssimo potencial arqueológico beirão, será a partir da década de oitenta, nos últimos vinte anos deste século, que a elaboração de trabalhos académicos de doutoramento e mestrado produzirá um conjunto de primeiras sínteses que, em moldes actuais, permitem começar a estruturar dados e conhecimento num discurso histórico coerente, conducente a uma Pré-História, História Antiga e Medieval elaboradas numa perspectiva regional.
Ao ser-nos colocado o desafio de conceber e coordenar cientificamente uma exposição que colocasse ao alcance do grande público um ponto de situação que, a um tempo, constituísse a síntese possível dos resultados desta investigação e o fizesse de forma inteligível e tão pouco técnica quanto possível, tivemos algumas hesitações.
Optámos por fim por seguir uma subdivisão temática por grandes períodos históricos cujas fronteiras temporais os progressos da cronometria radiocarbónica verificados nos últimos anos permitem começar a esboçar com alguma confiança.
Um primeiro bloco expositivo percorre os caminhos da Neolitização, dos primeiro percussores regionais do Neolítico Antigo aos construtores das arquitecturas monumentais megalíticas do Neolítico Médio e Final, obreiros de uma primeira “paisagem humanizada e monumentalizada” regional. Completa-o uma série de reproduções de algumas das obras primas da “Arte Megalítica” regional. O bloco seguinte engloba os “ensaios da complexização social” que, entre o Calcolítico e o Bronze Pleno, alteram concepções de territorialidade e visualização simbólica das paisagens, com algum destaque para as expressões regionais do campaniforme, fenómeno de charneira entre os dois períodos.
Um terceiro espaço expositivo, verdadeira área nobre do percurso, é dedicado ao Bronze Final, momento em que a área em apreço apresenta notável desenvolvimento. O florescimento do mundo Baiões/Santa Luzia é assim apresentado numa sucessão de quadros expositivos que procuram ilustrar: as produções cerâmicas; a moagem e armazenagem “doméstica” de alimentos; a metalurgia, de que se apresentam a quase totalidade dos elementos conhecidos, não só dos produtos acabados mas também dos elementos que permitem reconstituir técnicas e processos de fabrico; objectos de adorno; a tecelagem e as utensilagens líticas talhadas e polidas; as práticas funerárias; e o “banquete”, espaço de socialização e afirmação simbólica de status.
Um percurso final engloba a Idade do Ferro, a Romanização e a Idade Média.
O discurso histórico idealizado foi concretizado graças à competência e paciência da Senhora Arquitecta Ana Leandro que fez da tarefa quase impossível de mostrar, num espaço reduzido, cerca de sete mil anos de História Regional um permanente exercício de criatividade e diálogo a que se associaram os responsáveis pela parte gráfica.
Se para determinados períodos históricos é já possível modelizar percursos, estruturas e dinâmicas socioculturais, outros permanecem numa penumbra ainda não inteiramente penetrada ou, pelo menos, tornada pública pela investigação. O acesso à informação é desigual e limitações devidas aos tempos próprios de projectos de investigação em curso impedem que se mostre tudo o que gostaríamos.
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A arqueologia, na mudez anónima dos seus materiais, permite-nos apenas reconstruir o quotidiano colectivo das gentes, os seus hábitos em vida e os seus costumes na morte. Mostra-nos, assim e sobretudo, como todos os presentes se encontram ancorados em sucessivos passados, numa simbiose perfeita entre homens e paisagens.
Lisboa, Maio de 2000
Os Comissários Científicos
Datas: 7 de junho de 2000 a 20 de maio de 2001 | Local no MNA: Galeria Ocidental | Organização institucional: Museu Nacional de Arqueologia e Governo Civil do Distrito de Viseu | Comissariado científico: João Carlos de Senna-Martinez e Ivone Pedro | Tipo de exposição: Síntese regional