Corria o ano de 1974, a equipa do professor Donald Johanson, antropólogo e conservador do Museu de História Natural de Cleveland, encontrarou um fóssil de uma criatura do sexo feminino, que apelidaram de Lucy.
Sobre essa efeméride partilhamos um texto de Luís Raposo, antigo diretor do Museu Nacional de Arqueologia.
Começar pelo pé
Muito já se disse de como se fez o Homem, que na expressão de Teilhard de Chardin “entrou sem ruido”. Primeiro, quando o ruido ainda era muito, disse-se que entrou pela via mais aclamada, a do cérebro – tão grande ele era que Alfred Russel Wallace lhe não encontrava justificação biológica, considerou-o de criação divina, e por isso se separou do “darwinismo” (mais do que o seu anterior e admirado amigo, Charles Darwin). Mais tarde, a pouco e pouco, foi-se preenchendo o vazio que supostamente haveria entre o “macaco” e o “homem” em matéria de volume craniano… e lá se foi o “Rubicão cerebral”. Depois, olhou-se para a mão, dita triunfante por André Leroi-Gourhan entre outros, o instrumento por excelência de intervenção no mundo, da realização de trabalho – perspectiva que calou fundo em correntes marxistas. Mais tarde ainda, pretendeu-se que o que fez o homem foi o estômago, a dieta alimentar omnívora oportunista, posto que pela boca morre (ou vive) o peixe e todos os demais seres vivos – ideia que entusiasmou ecologistas.
Até que… até que em 1978, durante um simpósio em Estocolmo, surgiu alguém a defender outra tese: tudo começou pelo pé – algo estranho e aparentemente pouco digno do caminho que conduzia ao Homem. Esse alguém era Donald Johanson e usava pacientes colagens de fragmentos mil encontrados por equipa internacional onde também pontificavam Maurice Taieb, Yves Coppens e Tom Gray, achados feitos em remota terra, na pátria do povo Afar, lá para a Etiópia, em formação geológica do Hadar, datada de cerca de 3,2 milhões de anos. De todas as descobertas, a mais espectacular era uma que ocorreu precisamente em 24 de Novembro de 1974. Como nesse ano se festejava quase sempre, com dança, cerveja e o mais que não cumpre aqui referir, ouvindo até à hipnose a Lucy in the Sky with Daimonds dos Beatles, nada mais natural do que chamar Lucy ao fóssil encontrado, porque seria de criatura feminina, a avaliar pela bacia. Afinal, no seu evanescente ressurgimento, após milhões de anos desaparecida, ela evocava bem aquilo que a canção dizia: “Look for the girl with the Sun in her eyes. And she's gone.”
Depois os ossos da perna sugeriam claramente que podia ter sido bípede. E isso era quase tão onírico como todo o ambiente alucinogénico da canção e do álbum em que se incluía, porque caminhar de pé, mesmo bamboleantemente (ou ainda apor cima dessa maneira), era, e é, algo inusitado: cai-se com maior facilidade e é-se muito mais lento do que qualquer potencial inimigo. E a verdade é que existia realmente nessas alturas de há 3 milhões de anos quem o praticasse, nas vastas planícies que se estendem em redor do Quilimanjaro - como foi depois definitivamente comprovado pelas pegadas de Laetoli, dando coragem a Don Johanson para, no seu entusiasmo, chegar a escrever, quando divulgou e deu nome científico à Lucy, que era “uma nova espécie de homem” (A new species of man, Australopithecus afarensis from eastern Africa stimulates major revisions in understanding human origins. Further Evidence, 1-2: 6-9, 1978). Mas fazia-o apenas para consumo mediático: na verdade não a integrou no género Homo, mas no género Australipithecus, anterior e depois contemporâneo dos humanos e inicialmente descrito na África do Sul (dai o nome: “macaco do sul de África”). Acrescentou-lhe ao nível de espécie o nome da nação do povo Afar e salientou os seus traços gráceis ou plesiomorfos, quer dizer, muito plásticos e por isso com grande potencial evolutivo – de tal forma que Lucy poderia ainda inscrever-se na linhagem evolucionária que conduz a emergência do Homo entre 3 a 2 milhões de anos.
Hoje sabemos de saber confirmado que o bipedismo pode até ser mais antigo do que os 3 milhões de anos. Um bipedismo muito titubeante, talvez mesmo não permanente nas etapas mais antigas. A sua adopção constitui como que a chave de ignição de motor que se põe aceleradamente em marcha, conduzindo à reconfiguração total do crânio, com redução da zona da zona frontal (diminuição e perda do prognatismo facial) e desenvolvimento da zona cerebral (aumento da caixa craniana), com aproximação à figura geométrica da esfera – a que melhor serve o equilíbrio dinâmico de quem caminha de pé. Tudo decorre daqui, mesmo o caracter prematuro do parto e, com ele, a maior dependência e transmissão cultural entre mãe/pai e filhos, constituindo o conceito de família nuclear estável.
Ou seja, Lucy abriu-nos os olhos para vermos algo que na sua formulação prosaica nos pode desconsolar, mas é a mais pura da verdade: começámos pelo pé.
Luís Raposo
Novembro de 2022
Na imagem: Reconstituição de Lucy, na exposição A Aventura Humana, apresentada em 1985 no Museu Nacional de Etnologia (com comissariado português de Luis Raposo e apoio do MNA).