As investigações arqueológicas relativas ao contexto das chamadas estelas epigrafadas da I Idade do Ferro no Sul de Portugal revelaram com nitidez um surto civilizacional responsável pela produção daqueles texto epigrafados, já conhecidos desde o século XVIII e cuja atribuição era controversa.
Povoados, necrópoles, tesouros e novas lápides escritas têm definido um vasto conjunto civilizacional, detentor de uma cultura altamente desenvolvida e com contactos intensos com o Mediterrâneo Oriental que floresceu entre os sécs. VIII e V a.C. no Baixo Alentejo e Algarve, sob a área de influência de Tartessos, reino lendário referenciado nos autores da Antiguidade e localizada no Sul da Península.
Entre outros, D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas (1726-1814), Sebastião Philippes Martins Estácio da Veiga (1828-1891), Emílio Hubner (1834-1901) e José Leite de Vasconcellos (1858-1941) debruçaram-se sobre a problemática da escrita, até hoje não decifrada, destas estelas.
Entre as várias teses propostas para a leitura salienta-se a de Manuel Gómez Moreno, actualmete seguida pela maioria dos estudiosos. Os trabalhos levados a cabo desde há alguns anos em Portugal, vieram demonstrar que a escrita das lápides do nosso país recua ao século VII, senão mesmo ao século VIII a.C., sendo anterior, em pelo menos dois séculos, à escrita da Andaluzia e do Levante.
Escavações numa necrópole da I Idade do Ferro na Herdade do Mealha Nova (concelho de Ourique), revelarão um túmulo de incineração e vários de inumação, encerrados em estruturas de pedra com barro amassado, contendo um espólio de características orientalizantes, de que se destaca um escaravelho com o hieróglifo de Petubaste, faraó da XXIII dinastia egípcia (780-740 a.C.)
A lápide, Mealha Nova III, fracturada na parte superior pelo ferro da charrua, apareceu então implantada no solo com cunhas de pedra, junto dos túmulos, dado que comprova serem as lápides estelas funerárias, destinadas a erguerem-se em necrópoles e em relação com os indivíduos nelas tumulados.
Na necrópole da Fonte Santa (concelho de Ourique), nota-se que duas estelas tinham sido reutilizadas como tampas de túmulo mais recente, observação que mostra que, numa fase de decadência da evoluída cultura da I Idade do Ferro, as estelas, perdido o seu valor original e quiçá esquecida a escrita, eram usadas como elementos do aparelho dos túmulos, fenómeno que se enquadra no progressivo empobrecimento que os espólios literários revelam.
Os espólios funerários são constituídos por armas de ferro, pontas e coutos de lanças e dardos, pequenas hastes e facas curvas com rebites de ferro ou de bronze, acompanhadas de contas de pasta vítrea, pretas, azuis e verdes, oculadas a branco, escaravelhos com hieróglifos egípcios e ricos objectos de adorno em ouro e prata que denunciam relações com os mundos egeu e próximo-oriental.
Aparecem também fíbulas, pulseiras, xorcas e anéis de bronze, bem como vários tipos de contas de resina e de pedras semi-preciosas.
A cerâmica inclui vasos e taças feitas sem roda de oleiro, além de pequenos vasos e peças zoomórficas. Os poucos exemplares fabricados com roda parecem nitidamente importados.
Este material enquadra-se em datas bastante homogéneas, escalonadas entre os séculos VIII e V a.C.
Os túmulos, normalmente para enterramentos de inumação, de planta circular ou rectangular (estes mais recentes), são formados por uma parede exterior feita por uma ou várias filas de pedras alinhadas e sobrepostas, sendo o espaço interior preenchido com pedras amontoadas. Os mais monumentais podem ainda apresentar recintos envolventes, delimitados por paredes com uma abertura para passagem, ou por círculos de pedra alinhadas na vertical, encontrando-se, frequentemente, degraus integrados na estrutura tumular. A monumentalidade dos túmulos vai-se degradando progressivamente, acompanhando o empobrecimento das oferendas funerárias. Os povoados, por sua vez, são pequenos mas numerosos núcleos habitacionais abertos, situados geralmente perto das necrópoles respectivas e em locais sem defesas naturais. Os muros de pedra das habitações arrancam de uma pequena camada de terra batida sobre o solo rochoso regularizado. Dada a escassez de pedras e a presença de depósitos argilosos nos níveis de ocupação, conclui-se que a parte superior das paredes era normalmente em taipa, tipo de construção, aliás, usado na região até épocas bastante recentes. As observações arqueológicas revelam um abandono precipitado dos povoados, onde, além de cerâmica pouco fragmentada e de outros objectos, se encontram compridos espetos em bronze.
A disseminação dos povoados e das necrópoles ao longo de uma vasta área indica uma densidade populacional próxima da actual, pelo menos nas zonas mais estudadas, que se teria organizado em diversos grupos relativamente pequenos, ao jeito dos “montes” alentejanos de hoje. O número, a natureza, as características de implantação e de distribuição geográfica dos monumentos, a evoluída e uniforme cultura espalhada por tão ampla área, falam de uma população sem problemas de defesa que estaria dependente de um activo centro político-administrativo que ainda não se localizou.
Por volta dos sécs. V-IV a.C., as regiões do Baixo Alentejo e Algarve foram palco de uma profunda transformação cultural, ocasionada pela chegada de populações de origem continental que se instalaram sobre uma civilização em adiantado declínio, criando uma II Idade do Ferro, sem escrita e onde esmoreceram os contactos com o Mediterrâneo Oriental. Praticando plenamente um ritual de incineração, recolhem os fragmentos ósseos em urnas. Os ricos espólios funerários da I Idade do Ferro são, frequentemente, alvo de violação por parte daquelas populações.
Todos estes fenómenos se ligam, certamente, com a decadência e o desaparecimento do reino de Tartessos e, portanto com o declínio da influência cultural helénica no extremo ocidental da Europa, resultante também, e principalmente, da ascensão do poderio Cartaginês, que procurava impedir a passagem do estreito de Gibraltar a outro comércio que não o seu.
► Catálogo "A I Idade do Ferro no Sul de Portugal: epigrafia e cultura" (em execução)
Datas: 28 de novembro de 1980 a 31 de dezembro de 1981 | Local no MNA: Galeria Oriental | Organização institucional: Museu Nacional de Arqueologia | Comissariado científico: Caetano de Mello Beirão e Mário Varela Gomes | Projeto de Museografia: Mário Varela Gomes | Texto: Mário Varela Gomes e Caetano de Mello Beirão | Tipo de exposição: Síntese regional