Na continuidade do ciclo de sínteses nacionais sobre os sucessivos períodos históricos que precederam a fundação da nacionalidade portuguesa, o Museu Nacional de Arqueologia apresenta agora aos públicos nacionais e estrangeiros aquela que porventura terá sido a mais esperada exposição desta sequência, dedicada ao período islâmico em Portugal.
Como sempre, a expectativa vai de mãos dadas com a perspectiva da descoberta, que o sentimento de ignorância potencia. E não há certamente período histórico recente em que esta sensação de vazio mais nos incomode. Não é só o povo que, na sua sabedoria, atribuindo "aos mouros" tudo o que historicamente nos precede, estabelece fronteiras. É toda a nossa historiografia, que durante séculos nos manteve alheados do "outro", de quem nos diziam pouco termos aprendido, senão umas quantas produções e técnicas agrícolas que de todo foi impossível aferrolhar em arquivos ou esconder debaixo da terra. Lembramo-nos ainda do choque que, no início dos anos 70, nos provocou a sementeira nova onde, algo subversivamente, António Borges Coelho nos dava a conhecer uma "civilização do silêncio", que depressa sentimos fazer parte do nosso património comum. Mas esse foi apenas um primeiro passo.
É certo que nos anos seguintes assistimos à crescente afirmação dos estudos sobre a presença islâmica em Portugal, que pouco a pouco foram ganhando adeptos entre os nossos medievalistas. Faltava todavia a dimensão material para que se pudesse passar das palavras às coisas, dos textos às pessoas, dos ermamentos às continuidades populacionais. Tardou a consegui-lo. Foi preciso demonstrar que a arqueologia não terminava no Mundo Antigo; foi preciso criar novos polos de desenvolvimento disciplinar e povoá-los com um a nova geração de investigadores; foi, enfim, preciso romper com os espartilhos de rotinas impostas por mestres e instituições respeitáveis, mas demasiado acomodados.
A árvore cresceu entretanto e começou a dar frutos. Organizaram-se mostras itinerantes; instalaram-se núcleos museológicos; lançaram-se revistas; editaram-se monografias; promoveram-se congressos. É hoje impossível escrever a história portuguesa medieval, especialmente antes da fundação da nacionalidade, sem os contributos decisivos que provém das alcáçovas de Mértola ou de Silves, só para falar em dois dos mais emblemáticos centros desta renovação disciplinar. Mas faltava ainda fazer convergir toda essa soma de conhecimentos numa exposição globalizante, nacional, onde inscrições e capitéis, casas comuns e palácios, cisternas e poços, templos e necrópoles, loiças e adornos, moedas e jogos... nos revelassem o património islâmico e as suas memórias, com o colorido e vivacidade que só a prova material pode dar.
É este o sentido da exposição "Portugal Islâmico: os últimos sinais do Mediterrâneo". Nenhuma das exposições anteriores, inscritas neste ciclo, possuiu o mesmo estatuto de incursão em terra incógnita. Em nenhuma terá sido tão amplo o número de objectos nunca antes vistos pelo grande público. Em nenhuma terá sido tão limitada a contribuição dos acervos históricos dos museus nacionais. Em nenhuma se fez tanto caminho, caminhando.
Daí as palavras finais de reconhecimento que se impõem a todos os que verdadeiramente tornaram possível esta exposição. Mais do que qualquer outra, ela ficou sobretudo a dever-se à disponibilidade, ao esclarecido sentido do interesse nacional quase diríamos, das dezenas de instituições e personalidades que, de Norte a Sul do País, aceitaram ceder a maior parte dos objectos reunidos. A todos, o nosso profundo agradecimento, aliás extensivo aos numerosos investigadores que redigiram textos para o catálogo e enriqueceram o guião elaborado por Cláudio Torres e Santiago Macias, comissários científicos que, para além de terem sido "o corpo e a alma" da exposição, sempre indulgentes para com as nossas insuficiências e disponíveis para resolver os inúmeros escolhos do dia-a-dia, se confirmaram no estatuto de velhos amigos, com quem a equipa do Museu Nacional de Arqueologia teve o gratíssimo prazer de novamente colaborar.
Luís Raposo
DIRECTOR DO MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA
A Herança
Depois de cinco séculos de presença muçulmana em Portugal, seria impensável supor que, além da nomenclatura de regiões, cidades e aldeias (Algarve, Ourém, Alcabideche) o Islão não deixou marcas na sociedade portuguesa. A primeira área de influência islamo-árabe é sem dúvida a língua portuguesa. Desde unidades de peso e medida, como arroba ou alqueire, até interjeições como Arre!, a presença do árabe no nosso idioma é inegável.
Também não é possível ignorar o impacto da arte islâmica na arte e arquitetura portuguesas, sobretudo em artes decorativas como o azulejo ou a louça. O azulejo, aliás, é o legado islâmico em Portugal por excelência, sendo rapidamente adotado pela família real e pela Igreja. Na arquitetura, em vez de uma influência direta na forma das construções, retém-se sobretudo a adoção das técnicas de construção, de funções e de volumes na elevação de edifícios, como se pode observar no castelo de Alandroal.
Além disto, convém também salientar a importância muçulmana em técnicas de pesca, agricultura e comércio. No entanto, à medida que a sociedade mediterrânica se desagrega em favor de um estilo de vida mais uniformizado, estas técnicas de sobrevivência vão desaparecendo.
Superstição e crenças
A cultura popular do Gharb estava povoada de crenças, temores e superstições. A magia e os amuletos tinham assim um vasto campo de intervenção para garantir a proteção das pessoas, animais e bens. A entrada da casa era o local prioritário para a colocação de símbolos de proteção para afugentar espíritos maléficos. Ferraduras e Mãos-de-Fátima eram os mais populares. Também os alimentos eram protegidos, a começar pelas talhas, onde se conservava a água, e nas quais deviam estar escritas fórmulas apropriadas, como baraka (bênção) ou al-yumn (felicidade). Para afastar espíritos e animais indesejados eram utilizadas fumigações. A unha-de-cabra afastava víboras e serpentes, o açafrão ou a cânfora afugentava escorpiões.
A cerâmica e o "ciclo da comida"
A cerâmica, e no caso do Gharb, o vasilhame de cozinha, constitui o vestígio mais abundante da civilização islâmica.
Até metade do Século IX a cerâmica seguiu modelos e tradições autóctones, sem qualquer elemento decorativo ou morfológico que possa ser atribuído a oficinas orientais. Só em finais desse século, e devido à fixação em Córdova, junto da corte, de artistas e artesãos trazidos do Levante, surgiu no Ocidente uma nova produção cerâmica. Em algumas dezenas de anos, essa cerâmica conhecida por "verde e manganés" e inicialmente fabricada na cidade palatina de Madinat al-Zahra, passou a ser produzida em muitos outros centros oleiros do Ândalus. A sua decoração vidrada em "corda-seca" vai marcar o início de um longo e importante percurso técnico e estético na cerâmica ibérica, até ao seu apogeu na azulejaria do século XVI.
A exposição "Portugal Islâmico" esteve patente no Museu de Arqueologia de Lisboa de 16 de julho de 1998 a 17 de outubro de 1999. Continha objetos oriundos de vários museus portugueses, e foi a primeira grande amostra do passado islâmico português.
► Catálogo "Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo"
Datas: 15 de julho de 1998 a 17 de outubro de 1999 | Local no MNA: Galeria Oriental | Organização institucional: Museu Nacional de Arqueologia | Comissariado científico: Cláudio Torres (Campo Arqueológico de Mértola) Santiago Macias (Campo Arqueológico de Mértola) | Tipo de exposição: Síntese nacional de conhecimentos.